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O novo Inquérito de Expulsão deve dialogar com o Inquérito comum

Há 15 dias entrou em vigor o novo Inquérito Policial de Expulsão por força dos artigos 56 e 57 da Lei 13.445 de 24 de maio de 2017, cuja vigência prevê em seu artigo 125 a vacatio de 180 dias de sua publicação oficial, que se operou no dia seguinte, 25. Assim sendo, conforme LC 95/98 a vigência da norma ocorreu em 20 de novembro de 2017.

Neste mesmo dia foi editado Decreto presidencial regulatório 9.199 de 20 de novembro de 2017, publicado no Diário Oficial no dia seguinte, estando, portanto, há 15 dias, em plena vigência, tendo revogado, respectivamente, a Lei 6.815/90 (Estatuto do Estrangeiro) e seus Decretos 86.715/81 e o 98.961/90.

O novo Inquérito Policial de Expulsão prevê um procedimento bem mais democrático do que nosso Código de Processo Penal, devendo a comunidade acadêmica rever os conceitos do inquérito policial, haja vista que urge em nosso ordenamento a necessidade de tão preeminente regra dever ser colocada acima de uma outra de matriz sabidamente autoritária, sugerindo, até mesmo o diálogo das fontes de Erik Jayme para esse desiderato, já que as regras de solução de conflitos de normas clássico de Hans Kelsen e Norberto Bobbio não atendem mais à diversidade de situações jurídicas, nas quais o sistema de solução das antinomias tradicional, quais sejam da hierarquia, especialidade e cronologia (artigo 2º, LIND) não satisfazem, em muitas vezes, a necessária efetivação dos direitos e garantias fundamentais no âmbito do processo penal, notadamente, na investigação criminal.

Em outras palavras, a teoria do diálogo das fontes soluciona as antinomias enxergando as normas como uma unidade sistêmica nas quais terão incidência como um todo e não para que o surgimento de uma norma exclua uma outra e assim por diante, principalmente quando há entre elas uma função convergente, como por exemplo, a proteção ao poder de criminalizar abusivo por parte do Estado. Nesta feita, o jurista ao se deparar com uma inflação normativa e as mais variadas malhas jurídicas oriundas dessa enorme quantidade de regras deve pesquisar no ordenamento sua aplicação como um todo e fazer incidir a fonte ou as fontes que se apliquem ao caso concreto, não somente no âmbito dos microssistemas jurídicos que surgem por uma fonte específica.

É possível verificar, que na jurisprudência pátria há uma tendência de se conjugarem normas, ao invés de excluí-las, relativizando sua incidência e garantindo a coexistência dentro do sistema, o que denuncia a aplicação da teoria do diálogo das fontes em muitas ocasiões em que os tribunais são provocados a decidir sobre algo.

Com base nesta premissa, as normas de migração e o novo Inquérito Policial de Expulsão efetivaram, em verdade, a processualização da investigação como fase do sistema de persecução penal, posto que o artigo 58 da LM dispõe que “No processo de expulsão serão garantidos o contraditório e a ampla defesa.” A expressão “processo de expulsão” se repete no artigo 60, sem olvidarmos que se referem à expulsão como “medida administrativa”, cujo conceito se apresentam os mesmos, tanto no artigo 54 da LM, quanto no artigo 192 do Decreto 9199/17, que a regulamenta.

Este processo de expulsão, denominado de Inquérito Policial de Expulsão, chamamos a atenção para o artigo 192, II, do Decreto, onde se prevê como motivo para sua instauração a prática de “crime comum doloso passível de pena privativa de liberdade, consideradas a gravidade e as possibilidades de ressocialização no território nacional”, cuja sentença condenatória tenha transitada em julgado, conforme 192, caput.

Não estamos ignorando que a natureza jurídica deste inquérito de expulsão, denominado de policial, seja diferente do inquérito policial do CPP.

O inquérito policial do CPP visa a apuração de fatos com a finalidade de se delinear a responsabilização penal, para atender o escopo fundamental de se evitar ações penais temerárias, funcionando como um dispositivo democrático, conforme detalhamos na obra Investigação Criminal pela Polícia Judiciária.

O inquérito policial de expulsão tem como motivação uma decisão do Tribunal Penal Internacional ou decisão penal do judiciário nacional, em ambos os casos, as decisões devem ter transitado em julgado, consequentemente alcançado definitividade da responsabilização penal, anteriormente delineada por um inquérito apuratório[i] anterior. Isso significa dizer que, em ambos os casos, houve um procedimento investigatório anterior que apurou os indícios de autoria e prova do ilícito penal, posteriormente admissibilidade da acusação e julgamento.

Após esta distinção conceitual e finalística entre o inquérito do CPP e o do Decreto 9.199/17 o que teriam, então, em comum entre as normas que as permitissem epistemologicamente dialogar entre si?

Vimos que tanto a decisão penal internacional e a decisão penal nacional transitada em julgado são os fundamentos que dão ensejo ao inquérito de expulsão. Contudo, essas decisões foram precedidas de uma investigação penal ou inquérito apuratório preliminar, antes de se admitir a acusação e consequente julgamento, que deu origem à decisão penal. Esse é o ponto! A distinção entre a investigação preliminar que resultou na decisão penal internacional e a que originou a decisão penal nacional.

O Estatuto de Roma criou um Tribunal Penal Internacional, regulamentando a fase investigatória, instrutória, julgamento, recurso e execução da pena. Por pertinência ao assunto, nos limitaremos a primeira fase. A investigação preliminar no TPI pode ser instaurada de ofício ou por intermédio da Câmara de questões preliminares ou juízo de instrução (composta por 3 juízes), desde que tenha um fundamento razoável em ambos os casos.

Instaurada a investigação o suspeito possui diversos direitos previstos no artigo 55 (1) e (2) do Estatuto de Roma, promulgado pelo Decreto 4.388/02 e artigo 5º, §4º da CR/88. Dentre esse rol de direitos há o de se garantir a obrigatoriedade de defesa nas denominadas provas irrepetíveis, conforme artigo 56 (1), “a” e “b”. Outrossim, em conformidade com o entendimento da comunidade internacional, deve incidir no rol de direitos do investigado no Estatuto, também as garantias previstas no Pacto Internacional de Direitos Civil e Políticos.

Verificamos, assim, em síntese, que para um decreto condenatório no âmbito do Tribunal Penal Internacional, são assegurados a defesa desde a fase preliminar até seu julgamento final, contudo, em se tratando de uma decisão condenatória no Brasil não podemos dizer que o investigado terá essas mesmas garantias, de lhe ser assegurado desde a fase preliminar o direito de defesa. Frise-se, estamos tratando de defesa e não de contraditório.

Não temos dúvidas de que a fase de instrução e julgamento no processo penal brasileiro macula a garantia de defesa quando esta não lhe é garantida, notadamente nas denominadas provas irrepetíveis. Há uma distinção muito grande entre a realização de uma perícia em um objeto somente pelo Estado, e esta mesma perícia ser realizada com o acompanhamento da defesa, aproveitando-se do fato de que os vestígios ainda não tenham desaparecido, como é o caso de uma necropsia.

É de uma ingenuidade, senão um cinismo acadêmico, pretender convencer, que o réu teria o mesmo aproveitamento jurídico e fático de se explorar a prova em prol de sua defesa acessando um laudo pronto ao revés de ter acesso direto ao objeto periciado, aproveitando-se da mesma oportunidade na qual os vestígios ainda não teriam desaparecido. Exemplificando, atualmente o investigado não possui acesso ao cadáver para que possa realizar a perícia com quesitações formuladas pela defesa, mas somente ao laudo pericial já realizado, e ainda que lhe oportunizassem isso na fase processual, não haveria objeto mais a ser periciado em razão do desaparecimento das evidências por razões naturais. Reafirmamos, assim, que salta aos olhos a diferença entre se impugnar um laudo sem o objeto de prova e se impugnar esse mesmo laudo, porém, tendo acesso ao objeto examinado.

Não é somente essa a garantia solapada em nosso inquérito policial do CPP, que não o foi no inquérito por crime da competência do TPI. Insta salientar, que a competência para esta Corte internacional é para crimes graves, sendo um deles previsto como hediondo em nosso ordenamento, conforme artigo 1º do Estatuto, quais sejam o crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão, e mesmo assim, o sagrado direito de defesa é assegurado na fase investigatória.

Recentemente, a Lei 13.245/16, que altera o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil traz como conteúdo epistêmico o direito de acesso aos autos da investigação criminal o direito de defesa técnica e proteção efetiva ao princípio já consagrado em nossa Carta Política em seu artigo 5º, LVII, qual seja o nemu tenetur se detegere ou princípio da não autoincriminação, prevendo o direito de quesitação pelo advogado, bem como a nulidade da prova oriunda do interrogatório do investigado que tenha advogado, porém lhe foi sonegado o direito de ser assistido por este, em nítida adoção da teoria dos frutos da árvore envenenada em fase apuratória.

Antes desta lei de 2016, nós já havíamos defendido que a súmula vinculante 14 do STF já trazia a necessidade de se garantir a defesa na investigação criminal e que esta garantia deve ser efetivada pelo Delegado de Polícia como consequência da incidência das garantias constitucionais e de convencionalidade dos tratados e convenções de Direitos Humanos, conforme deixamos claro na obra Investigação Criminal pela Polícia Judiciária[2] e em artigo publicado na Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal [3].

Esta atenção foi repetida em palestra por nós proferida no I Encontro Nacional de Delegados de Polícia sobre Aperfeiçoamento da Democracia e Direitos Humanos em Foz do Iguaçu em 29 de novembro de 2014, nas quais tivemos a oportunidade de construir o enunciado 22[4], que assim dispunha:

A súmula vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal institui a defesa na investigação criminal, cuja efetividade implica em intimar o imputado a se pronunciar sobre os elementos informativos antes do relatório final ou decisão de indiciamento, ressalvados os casos de urgência ou de perigo concreto à eficácia da investigação.

A assistência jurídica na fase investigativa é um imperativo categórico, haja vista que a reflexão kantiana tentou mostrar que a dicotomia empirismo/racionalismo requer uma solução intermediária já que “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas”[5]. Em outras palavras, ao mesmo tempo que observamos que a defesa da forma que é interpretada somente socorre aos que possuem condições de pagar um advogado, violando a isonomia, por uma conclusão empírica (empirismo francês de Descartes). Por outro lado, temos que a leitura da Constituição (artigo 5º, LXIII) ao prevê a assistência jurídica do preso na ocasião de seu flagrante, nos permite concluir racionalmente (racionalismo inglês de Newton) o fundamento legal da garantia à defesa desde 1988, porém não aplicado na prática aos assistidos pela Defensoria Pública, mas comumente aos patrocinados por grandes e dispendiosos escritórios da advocacia privada.

A lei surge porque o apego ao positivismo não permite um Direito de construção com uma hermenêutica prospectiva, mas um Direito de repetição de exegese retrospectiva, de manutenção de tudo como está (1941), que contamina até mesmo a mais alta corte de nosso país, na qual preconiza o racionalismo kelsiano, que despreza a realidade social propondo um conteúdo legislativo neutro sem conteúdo ideologicamente democrático, resultando na nefasta premissa de que o artigo 5º, LV da CR [6] somente seja aplicável ao processo judicial e ao administrativo, não obstante reconhecerem a natureza administrativa da investigação criminal, não reconhecendo a existência de uma zona de interseção processual de conexão instrumental entre a fase apuratória e a instrutória, negando, com frequência, garantias inerentes ao jogo processual, trazendo para a investigação criminal um não-processo, ainda que administrativa a sua natureza, e, consequentemente, a lógica do não-Direito, negando-se defesa e apontamentos de nulidades nesta seara, operando-se uma fratura entre garantias e a sua efetiva realização, que vem ocorrendo de forma seletiva, fazendo nascer um ambiente juridicamente construído sob o paradigma de um Estado de exceção[7] na investigação criminal.

A verificação seletiva das garantias fundamentais deveria levar a doutrina a voltar os olhos para a necessidade de uma quebra de paradigmas, na qual apontamos a já ultrapassada necessidade de uma teoria da investigação criminal[8] como categoria de uma teoria própria do processo penal, consequentemente um inquérito policial como instrumento de garantias[9].

Desta maneira, em mais um esforço, como vimos publicando nas obras já referenciadas, se o inquérito policial de expulsão tem como fundamento número um, sentença penal do TPI, calcado em uma investigação preliminar fundada em garantias de direitos humanos para crimes como de genocídio, haveria algum sentido não reconhecermos que o inquérito policial de expulsão, cujo fundamento número dois é baseado em sentença penal nacional por crime comum não admitíssemos a defesa na fase do inquérito do CPP como um imperativo categórico e definitivamente entendermos que é um ato necessário ao absoluto direito de liberdade? Faz sentido haver garantias à investigação por crimes contra humanidade e menos para furto de gado? Com a palavra, os garantistas.


[1] HOFFMANN, Henrique. Moderno conceito de inquérito policial. In HOFFMANN, Henrique et al. Temas Avançados de Polícia Judiciária, Salvador: JusPodvum, 2018, p. 25.

[2] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Garantia de Defesa na Investigação Criminal. In HOFFMANN, Enrique, et al. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 193

[3] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Inquérito Penal de Garantias – Sigilo e direito à informação do investigado – aspectos constitucionais e processuais penais. Artigo publicado na Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre: Síntese, v.13, nº 74, jun./jul. 2012, p. 21.

[5] KANT, I. Crítica da razão pura – Os pensadores. Vol. I. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 75

[6] Art. 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 88

[8] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da Investigação Criminal. Uma introdução jurídico-científica. Coimbra: Almedina, 2010, p. 173 a 175

[9] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Inquérito policial como instrumento de garantias. In HOFFMANN, Enrique, et al. Polícia Judiciária no Estado de Direito. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 297

 

Sobre o autor: O Dr. Ruchester Marreiros Barbosa é Delegado de Polícia Civil do Rio de Janeiro.

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