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PROVA DO CRIME DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA

Necessidade de fixação de standards probatórios e informativos para demonstrar a violência doméstica de violência psicológica, em sede de prisão flagrancial ou no curso das investigações policiais

 

Por Patricia Burin, Fernanda Moretzsohn e Joaquim Leitão Júnior.

 

Introdução

Em nossa última coluna, discorremos a respeito da (im)possibilidade da utilização de mera fotografia da lesão como elemento de convicção suficiente na persecução penal de agressões físicas perpetradas em sede de violência doméstica e familiar contra as mulheres (https://www.conjur.com.br/2022-nov-11/questao-genero-lesoes-violencia-domestica-podem-comprovadas-fotos). Nesta coluna, pela sugestão do Dr. Joaquim Leitão Júnior, colega delegado da Polícia Civil do Mato Grosso, e contando com sua valorosa participação, vamos novamente pensar em standards probatórios, agora com os olhos voltados especificamente para o crime do art. 147-B do CP: violência psicológica.

Como já observamos anteriormente (https://www.conjur.com.br/2021-ago-12/moretzsohn-burin-violencia-psicologica-crimes-correlatos), a categoria “violência psicológica” prevista na Lei Maria da Penha não encontrava, no ordenamento jurídico, tipos penais a ela correlatos. No curso de 2021, foram então positivados os crimes de perseguição (art. 147-A do CP) e de violência psicológica (art. 147-B, do CP), este especificamente relacionado às mulheres.

O crime de violência psicológica ficou assim positivado:

Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.

Estamos diante de um crime comum quanto ao sujeito ativo (pode ser praticado por qualquer pessoa, homem ou mulher), mas próprio quanto ao sujeito passivo: a vítima necessariamente será uma pessoa do gênero feminino, independentemente da sua idade. Vale reiterar nossa posição no sentido de que a mulher trans é pessoa do gênero feminino para fins legais, posição já adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (https://www.conjur.com.br/2020-ago-03/lima-burin-mulheres-transgenero-maria-penha-policia).

A conduta criminosa, necessariamente dolosa, consiste em (a) causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento; ou, (b) causar dano emocional à mulher com o objetivo de degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. O tipo exemplifica como essas condutas podem ser praticadas: mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. Se várias condutas forem praticadas no mesmo contexto, haverá crime único (tipo misto alternativo).

O dolo, entenda-se, está ligado a esses meios de ação. O agente deve, livre e conscientemente, querer ameaçar, constranger, etc. Não se exige que aja com o fim específico de causar dano emocional.

O crime é material, isto é, exige-se um resultado naturalístico: a provocação de dano emocional à mulher. Tem prevalecido, entretanto, que não é necessário realizar perícia (voltaremos neste ponto mais a frente). A tentativa é, em tese, admissível, pois não se trata de crime habitual (embora o usual seja a prática reiterada de atos, externando o ciclo da violência sobre o qual discorremos em https://www.conjur.com.br/2021-abr-13/opiniao-medidas-protetivas-consentimento-vitima).

A ação do sistema de persecução penal é incondicionada, não demanda que a vítima externe sua vontade via representação criminal. A atuação estatal se dá de ofício.

Perceba-se que, ao indicar a pena, o legislador expressamente registrou “se a conduta não constituir crime mais grave”. O crime é, pois, expressamente subsidiário. Se for possível a configuração de crime mais grave, não será caso de incidência do art. 147-B do CP.

A tipificação da perseguição e da violência psicológica (arts. 147-A e 147-B do CP) são relevantes. Antes dessas alterações legislativas, tínhamos um cenário manco, em que a Lei Maria da Penha previa como violência aquela de viés psicológico (art. 7º, II), mas não se encontrava, no sistema, crime a ela correlato, implicando proteção insuficiente. Além disso, era possível o indeferimento de medidas protetivas de urgência a vítimas desse tipo de violência, na medida em que alguns operadores do Direito ainda não conseguem dissocia-las da prática de crimes. Esse cenário, felizmente, mudou em 2021.

Não obstante, a despeito do imenso valor simbólico da tipificação da violência psicológica nas relações intrafamiliares, a redação do tipo gera celeuma em relação à sua prova. Como mencionado acima, o crime é material, ou seja, demanda o resultado naturalístico (o dano emocional à mulher), mas ao mesmo tempo, tem-se estabelecido o entendimento de que não exige prova pericial, sendo o dolo relacionado às condutas e não à causação do dano. Como então estabelecer a prova desse crime? Como demonstrar que determinadas condutas perpetradas contra uma mulher foram hábeis a configurar-lhe dano emocional passível de punição na esfera criminal?

Afinal, no âmbito das Delegacias de Polícia, como se comprova a violência psicológica doméstica?

Compete ao Estado-investigação, pela atuação da Autoridade Policial (dominus investigatio) e de seus agentes policiais, carrear elementos probatórios e informativos para demonstrar e comprovar a autoria, a materialidade delitiva e suas circunstâncias, de onde germina a necessidade de fixação de standards probatórios para demonstrar a violência psicológica, seja em sede de detenção flagrancial, seja no curso das investigações policiais, mormente diante da dificuldade natural de se comprovar tais violências. Cabe lembrar que, em nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre iniciativa probatória, ou seja, a produção probatória é livre, desde que observado a ordem pública, moral e os bons costumes. O art. 156 do Código de Processo Penal traz o ônus probatório no processo penal:

Art.156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

Os standards probatórios são parâmetros que permitirão a condenação ou absolvição e também servem para balizar eventual prisão flagrancial, instauração de procedimento policial e indiciamento. Os standards probatórios apontam para o grau de confiabilidade que a sociedade deposita e acredita ao juiz em suas deliberações, o mesmo se dando em relação a autoridade policial. Nessa circunstância, repetimos o questionamento: como se comprovar a violência psicológica doméstica no âmbito das Delegacias de Polícia?

Considerando que o crime é recente e que os precedentes são poucos, este artigo não pretende exaurir as possibilidades probatórias, mas indicar alguns possíveis caminhos e abrir o diálogo com outros operadores do sistema.

O professor Rogério Sanches da Cunha argumenta, ao tratar da dispensabilidade de laudo técnico que comprove os danos psicológicos que:

A prova do resultado pode ser feita pelo depoimento da ofendida, por depoimentos de testemunhas, relatórios de atendimento médico, relatórios psicológicos ou outros elementos que demonstrem o impacto do crime para o pleno desenvolvimento da mulher, o controle de suas ações, o abalo de sua saúde psicológica ou algum impedimento à sua autodeterminação. Considerando que o resultado do crime não é a lesão à saúde psíquica, mas o dano emocional (dor, sofrimento ou angústia significativos), laudos técnicos não são necessários. (FERNANDES, Valéria Diez Scarance; ÁVILA, Thiago Pierobom de; CUNHA, Rogério Sanches. Violência psicológica contra a mulher: comentários à Lei n. 14.188/2021. Meu site jurídico, 29 de julho de 2021. Disponível em: <https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/29/comentarios-lei-n-14-1882021/>. Acesso em: 14 out. 2021)

Ressalte-se, outrossim, que algumas das condutas previstas no tipo penal, por si só, comprovadas por quaisquer das formas abaixo relacionadas, tais como humilhações em público, constrangimentos, ridicularização da vítima, desde que produzidas de forma reiterada, por si só já podem comprovar o fato típico.

Partindo das premissas de que o dolo relaciona-se às condutas (não à causação de dano) e de que a prova pericial do dano emocional é desnecessária, sugerimos as seguintes diligências como possíveis:

  • Oitiva da vítima: as falas da vítima seriam fortes elementos para comprovar a violência psicológica doméstica ao menos em sede de investigação, mormente pelas infrações penais ocorrerem clandestinamente. Não obstante o especial valor da narrativa da mulher, outros elementos devem ser angariados, para corroborá-la;
  • Oitiva de pessoas próximas ao casal, ainda que não tenham presenciado diretamente nenhuma das condutas descritas no tipo;
  • Avaliação psicológica ou psiquiátrica (todavia, devemos ter cuidado para aquelas situações em que o vestígio desaparece, podendo outros meios comprovarem, conforme jurisprudência e doutrina construíram para outras situações);
  • Elementos documentais: (a) apesar de controvertido o assunto, pensamos que tanto a transcrição de mensagens ou “prints” seriam indicativos relevantes da violência psicológica doméstica, na hipótese de a violência ser praticada via e-mail, WhatsApp, Facebook, Instagram, Twiterr, Tinder ou outro canal de comunicação virtual instantâneo (a prova para comprovar a violência psicológica doméstica poderia ser prova no formato físico ou virtual); (b) juntada de prontuário de atendimento médico ou de aquisição de uma medicação para fins de equilíbrio psicológico; (c) juntada de imagens em fotográfica, áudio e vídeo (d) ata notarial.

Não podemos olvidar que, a depender da circunstância fática, a intensidade da violência psicológica doméstica pode configurar lesão corporal, por violar a integridade psicológica da vítima (conforme já tratamos em https://www.conjur.com.br/2021-jul-15/opiniao-violencia-psicologica-maria-penha-lesao-corporal ).

 

Das considerações finais

Enfim, os questionamentos acerca da prova do crime de violência psicológica nos parecem muitos, motivo pelo qual realmente faz-se necessária a fixação de standards probatórios e informativos para demonstrá-la em sede de detenção flagrancial ou no curso das investigações policiais.

Para finalizar, não se pode esquecer de que a produção de provas para caracterização da materialidade do crime não pode, de maneira alguma, abrir espaço para revitimização daquela que já vem sofrendo danos psicológicos e que merece proteção e não mais uma forma de violência, dessa vez provocada pelo ente estatal.

 

Referências:

https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/29/comentarios-lei-n-14-1882021/, consultado aos 19/12/2022

https://www.dizerodireito.com.br/2021/07/comentarios-lei-141882021-crime-de.html, consultado aos 19/12/2022

https://www.meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/29/comentarios-lei-n-14-1882021 Acesso em: 19/12/2022

 

 Autores: 

Patricia Burin   É delegada de polícia no estado de Santa Catarina, mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.

 

Fernanda Moretzsohn  É delegada de Polícia Civil no estado do Paraná, pós-graduada em Direito Público e pós-graduada em Direito LGBTQIA+, autora pela editora Umanos, professora da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e diretora jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná (Adepol-PR).

 

Joaquim Leitão Júnior É delegado de polícia no estado de Mato Grosso. Atualmente lotado no Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado e atuando também na Delegacia Especializada de Roubos e Furtos de Barra do Garças-MT. Graduado em Direito pelo Centro de Ensino de Superior de Jataí (CESUT). Pós-graduado em Ciências Penais pela Rede Luiz Flávio Gomes. Pós-graduado em Gestão Municipal pela Unemat. Colunista do site Justiça e Polícia, coautor de obras jurídicas e autor de artigos jurídicos. Ex-Assessor Institucional da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-Diretor Adjunto da Academia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso.

 

Categorias: Artigos

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