GUTEMBERG DE LUCENA ALMEIDA1
RESUMO
Os ideais do garantismo prevendo uma relação entre o dever do Estado de punir condutas infracionais e o direito do investigado/acusado ao respeito a garantias éticas, morais e legais elencadas como fundamentais à dignidade da pessoa humana, vem sofrendo interpretações com conceitos vagos e abertos, de um lado banalizando o instituto dos direitos e garantias fundamentais e, de outro, fomentando a ascendência e proliferação do crime organizado, na certeza da ineficácia da punibilidade. Surge de outro lado, a Polícia Judiciária zelando pela aplicação desses direitos e garantias de forma equilibrada e em seu aspecto relativizado e não absoluto.
Palavras-chave: garantismo, direitos fundamentais, equilíbrio, Polícia Judiciária, Justiça.
INTRODUÇÃO
Partindo de aspectos históricos e conceituais buscando entender o atual cenário da política criminal e de segurança pública em nosso extenso território nacional, com todas suas peculiaridades e diferenças sociais e culturais em cada região, a pesquisa se direciona a mostrar como se construiu uma doutrina facilitadora de um processo de fomento da criminalidade e criação de barreiras para atuação especialmente de forças policiais.
O elevado teor crítico ao sistema vigente pode, em primeiro momento, gerar a impressão de autoritarismo, sendo, porém, desconstruída essa impressão, a medida que os argumentos se encaixam com a realidade através da visão cotidiana das ruas e do próprio posicionamento jurídico nos tribunais, incluindo tribunais superiores.
O garantismo não pode continuar sendo visto e trabalhado unilateralmente sem espaço a questionamento e demonstração de que seu excesso tem gerado consequências sociais graves, principalmente no aumento da violência.
A proposta apresentada é dar uma nova visão, com tom de equilíbrio, à preocupação em frear a criminalidade e a violência e ao mesmo tempo não deixar de aplicar as garantias e direitos conquistados e elevados à categoria de cláusulas pétreas constitucionais, aplicando em campo prático uma teoria realizável e não aquela muitas vezes estabelecida em regramentos inaplicáveis, tamanha a distância que se encontram da rotina dos aplicadores.
- GARANTISMO E CRIMINALIDADE
A expressão garantismo, referida por Luigi Ferrajoli, não pode ser concebida dissociada do instituto constitucional dos direitos e garantias fundamentais. Reflete, em apertada síntese e em seu literal significado, “garantia” a um sujeito de direitos dessa gama de previsões benéficas ao pleno exercício de sua defesa, à salvaguarda de sua integridade física, psicológica e mental e à não violação a outros bens jurídicos essenciais à sua condição humana.
Se traçada uma evolução histórica dos direitos fundamentais, mesmo antes do Cristianismo, que firmou valores de respeito e amor ao próximo mundialmente propagados, já havia previsões filosóficas e algumas até legais tutelando alguns bens de essencial presença para a dignidade humana.
Nesse aspecto, valores e ideais foram considerados na formação das mais diversificadas sociedades ao longo da História. A própria História da Humanidade contempla momentos de veementes agressões a direitos, assim como de grandes conquistas na tentativa de aplicar a proporcionalidade no estabelecimento das relações sociais. Igreja, Estado, povo, cada um desses entes exerceu, em determinado momento histórico, e à sua maneira, influência para essa evolução também em termo de garantia de direitos.
A respeito da definição, ensina Ferrajoli:
Garantismo designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de estrita legalidade, próprio do Estado de Direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. É, consequentemente, garantista todo sistema penal que se conforma normativamente com tal modelo e o satisfaz efetivamente2.
Acontecimentos históricos estabeleceram a divisão cronológica dos direitos fundamentais, a partir de gerações dos direitos humanos. Em uma primeira geração de direitos humanos, os direitos à liberdade, com inspiração na Magna Carta da Inglaterra de 1215, buscava a limitação do poder estatal de forma a não interferir em alguns aspectos da vida individual e social do cidadão, marco dos direitos e garantias individuais. Seguiram-se a Revolução Francesa com a posterior Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão de 1789 e a primeira Constituição Norte-Americana, com o Bill of Rights, prevendo vários direitos aos cidadãos frente ao poder estatal.
A segunda geração de Direitos Humanos tem marco na Revolução Industrial já no Século XX surgindo os direitos sociais, econômicos e culturais, preconizando a igualdade como lema básico.
Em terceira geração, decorrentes dos traumas deixados pelas duas grandes Guerras Mundiais, surgem os direitos de solidariedade ou fraternidade, preconizando paz e autodeterminação dos povos, bem como proteção a direitos difusos e coletivos. As gerações quarta e quinta preveem a bioética, biodireito e democracia, mantendo os postulados pela paz com garantia de não retrocesso.
Portanto, alicerçados nessas bases históricas, os direitos e garantias fundamentais no Brasil vieram estabelecidos em previsão na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu Título II, abrangendo dentre outros dispositivos o aclamado art. 5º, forte bandeira associada ao garantismo para contrabalancear ações estatais advindas das atuações em vários ramos do Direito, incluindo Direito Penal, Direito Processual Penal e mesmo o Direito de Polícia Judiciária.
O garantismo penal vem adequar esses preceitos constitucionais à atuação estatal. Entretanto, relevante no estudo de todo esse processo é considerar que os direitos e garantias fundamentais não se revestem de caráter absoluto, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
Anotação Vinculada – art. 5º da Constituição Federal – Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.<br>[MS 23.452, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-1999, P, DJ de 12-5- 2000.]<br>Vide HC 103.236, rel. min. Gilmar Mendes, j. 14-6-2010, 2ª T, DJE de 3-9-2010”3.
Quando analisada a questão da criminalidade atual, especialmente exercida pelas mais variadas organizações criminosas, não se pode deixar de observar que muitas vezes o aplicador do Direito estará diante de situações que clamam pela garantia da ordem pública, defesa da coletividade e consequentemente razões de relevante interesse público, espelhando a decisão retro citada.
Para o médico psiquiatra Posterli a delinquência não desaparece e a criminalidade transforma-se, evoluindo no mundo atual, fazendo nascer novas formas de condutas antissociais, assim definindo:
A Criminalidade é a ocorrência de crimes num determinado tempo e local; se expressarmos isso em número, isto é, se materializarmos tal ocorrência em termos estatísticos, teremos o índice de criminalidade; a criminalidade, a nosso ver, lembra-nos a possibilidade da ocorrência de crimes, e possibilidade é a qualidade daquilo que é possível, daquilo que pode ser, enquanto, especificamente, o índice de criminalidade refere-se a probabilidade, ou seja, a expressão matemática de quanto ser, real, daquilo que pode ser. Direito Penal é, então, uma ciência do dever ser, enquanto a Criminologia é uma ciência do ser, logo, aquele, uma ciência normativa, dogmática, esta, uma ciência explicativo-causal do crime4.
Em seu estudo doutrinário a respeito das principais terminologias jurídicas, João Biffe Júnior e Joaquim Leitão estabelecem importante e didática distinção entre o que vem a ser o garantismo integral e o garantismo hiperbólico monocular:
O garantismo divide-se, assim, em: a) garantismo negativo: visa frear o poder punitivo do Estado, ou seja, refere-se à proibição de excesso. Trata-se de um modelo normativo que obedece a estrita legalidade voltado a minimizar a violência e maximizar a liberdade, impondo limites à função punitiva do Estado; b) garantismo positivo: visa fomentar a eficiente intervenção estatal, ou seja, refere-se à proibição da intervenção estatal insuficiente (deficiente), bem como evitar a impunidade. Assegura a proteção aos bens jurídicos de alta relevância social. Em suma, o garantismo hiperbólico (aplicado de maneira ampliada e desproporcional) monocular (tutela apenas os direitos fundamentais do investigado/processado, desconsiderando- se o interesse coletivo) contrapõe-se ao garantismo penal integral, que resguarda os direitos fundamentais afetos à coletividade.5
E nesse sentido, considerando as peculiaridades da criminalidade desses tempos, é que se deve fomentar uma eficiente intervenção estatal, evitando a impunidade, nos exatos termos da definição do garantismo positivo e não apenas pura e simplesmente buscar a liberdade à qualquer custo de criminosos, sem uma preocupação com os reflexos que tais ações irão causar perante o convívio social.
- REFLEXOS SOCIAIS: INTERIORIZAÇÃO E ASCENSÃO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS E AUSÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS EFETIVAS PARA A DESCONSTRUÇÃO DESSE CENÁRIO ASCENDENTE
Ao final da década de 1970 e início dos anos 80 ocorreu a miscigenação de grupos dentro das unidades penitenciárias, aqueles considerados presos políticos, que se nominaram perseguidos pelo Regime da Ditadura Militar, então vigente, com grupos de detentos reclusos pela prática de crimes comuns contra a sociedade, como roubos, tráfico de drogas, furtos, estupros, homicídios e outros. Relatos históricos apontam que essa miscigenação foi embrionária no fortalecimento de organizações criminosas6.
Alguns presos do período militar brasileiro adotavam ensinamentos do “Manual do Guerrilheiro Urbano”, de Carlos Mariguella 7 , tornando-se verdadeiros professores àqueles outros reclusos que, por caráter ou mesmo opção, escolheram o crime como meio de vida, não lhes importando qualquer motivação ressocializadora ou inclusiva na sociedade comum. Frisando que, evidentemente, existiam outros presos que estavam sim dispostos a cumprir sua pena ou seu período de prisão com esperança de retornar à sociedade de forma limpa e sem buscar reincidir em condutas criminosas.
Assim se vê que o objetivo ressocializador floreado na Lei de Execução Penal, Lei Federal n. 7.210 de 1984, trouxe bons motivos e também ideais para recuperar o autor de conduta criminosa, já como uma resposta às mazelas do sistema carcerário dos últimos tempos que deflagraram essa verdadeira revolução e resistência dentro dos presídios contra o “sistema opressor”, expressão esta utilizada pelos estatutos das principais organizações criminosas brasileiras emergentes na época, Comando Vermelho (CV) no Rio de Janeiro e Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo.
Sem alcançar muitos resultados práticos, a LEP, Lei de Execução Penal, embora com todas suas garantias e direitos, não conseguiu ser efetiva principalmente em dois aspectos de fundamental relevância: a adequada estruturação das unidades penais e a ressocialização daquela clientela do sistema, inibindo a reincidência. Soma-se a isso, também, a total ausência de intenção de lideranças e simpatizantes de associações criminosas em participar desse modelo de sociedade afastada da prática de infrações penais, seduzidos pelo poder do comando do crime, lucratividade fácil advinda especialmente pelo tráfico de drogas e tráfico de armas nesta época e, algumas vezes, até pela “glamourização” do crime por setores dessa própria sociedade.
Essa criminalidade organizada, com o passar do tempo e diante da ausência de políticas públicas efetivas que pudessem frear seu avanço, foi ganhando estrada pelo país, chegando às penitenciárias, cadeias públicas e unidades penais de todos os Estados da Federação. Além do Comando Vermelho e PCC, outras organizações ganharam corpo e passaram a serem também conhecidas, a exemplo da Família do Norte, FDN, originária na Região Nordeste.
O crescimento vem acompanhado de legislações frágeis, somente em 2013, surgindo uma legislação específica a tratar das organizações criminosas, Lei 12.850, conceituando-a, prevendo sanções penais e regimes de cumprimento mais rigorosos, mas que não impediram o avanço. Avanço acompanhado de muita violência, vitaminada pelos conflitos entre cada organismo criminoso, que somou ao país uma sangrenta estatística de mais de sessenta mil mortes por ano.
Em que pese os gloriosos esforços de todas as forças de segurança pública, é pacífico que se não houver uma mobilização sistêmica, ainda não serão suficientes os resultados. Nunca se prendeu tanto, com tanta qualidade, mas nunca se viu tantos benefícios e regalias a custodiados e reclusos como nos dias atuais. Benefícios legais, benefícios advindos de decisões judiciais ou pleitos de órgãos de defesa que parecem fazer vista grossa ao exuberante problema de violência e criminalidade que a sociedade em sofrimento e temor vivencia.
A respeito, observa a Juíza Ludmila Lins Grilo:
Primeiramente, é necessário saber o que é o laxismo penal. Nas palavras de Volney C.L. de Moraes Jr., laxismo penal significa a “tendência a propor solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção oposta, ou punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do condenado, tudo sob o pretexto de que, vítima do fatalismo socioeconômico, o delinquente sujeita-se, quando muito, à reprimenda simbólica”. Em outras palavras, de forma simplificada, pode-se dizer que laxismo penal significa a frouxidão exacerbada na aplicação das leis penais em favor de um criminoso que praticou crime de estatura muito superior à reprimenda que recebeu8
A sociedade, confiante na proteção dos órgãos de segurança pública, chega ao nível de combate incessante, como quem usa de inseticidas no enfrentamento a baratas, elas somem, dissipam, migram por um tempo, mas, logo se perceberá sua presença de volta.
- INSTITUTOS JURÍDICOS DE PRESUNÇÃO DE CULPABILIDADE DA ATIVIDADE POLICIAL EM RELAÇÃO À TORTURA E EXCESSOS, BANDIDOLATRIA E O ROTINEIRO DISCURSO BANALIZANDO O INSTITUTO DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Não bastasse esse real movimento referido, presente no Sistema de Segurança Pública e Justiça, uma outra vertente ainda mais agressiva e preconceituosa parte de instituições, órgãos e entidades, impregnadas por ideias do garantismo hiperbólico monocular que vê, especialmente nos órgãos policiais, algozes e torturadores semelhantes aos sombrios tempos da Idade Média.
Não de hoje o Conselho Nacional de Justiça, CNJ, atua em uma seara questionável de legislar sobre assuntos específicos não tratados pela legislação brasileira, inovando o ordenamento jurídico e mais surpreendentemente impondo responsabilidades além das previstas legalmente, o que feriria além do devido processo legal, o próprio princípio da legalidade.
Assim foi feito com a instituição das Audiências de Custódia, através da Resolução 213/2015. A construção “à brasileira” do modelo de audiências de custódia, por exemplo, buscando alienigenamente normatização na Convenção Americana de Direitos Humanos e Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas9.
Como estabelecendo uma presunção de culpabilidade pela prática de tortura por agentes policiais, estabelece a norma que a condução da pessoa presa à autoridade judicial é o meio mais eficaz para prevenir e reprimir a prática de tortura no momento da prisão10.
Entretanto, a normatização alienígena citada parece não ter desejado restringir essa análise à figura do magistrado. O art. 7º, 5 da Convenção Americana de Direitos Humanas, onde se fundamentou a resolução, estabelece que a pessoa presa deve ser conduzida à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais.
Nesse sentido, observa Hoffmann em seu estudo:
Nesse panorama, nenhum espanto causa afirmar que o delegado de polícia é autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais. (…) até porque fosse a outra autoridade o próprio juiz, não faria sentido o tratado internacional ter diferenciado os atores jurídicos em sua relação11.
Para citar apenas poucos efeitos negativos no sistema judicial brasileiro, tal previsão burocratiza mais esse sistema, trava pautas e andamentos processuais, além de supervalorizar a palavra de um suposto criminoso em detrimento da fé pública do agente de segurança. Possui alto custo ao Estado, sendo que a regularidade da prisão poderia facilmente ser aferida pelo Delegado de Polícia, detentor de carreira jurídica, ou pela própria análise documental do Auto de Prisão em Flagrante ou cumprimento de prisão por mandado.
Além de outros institutos, aos quais infelizmente se filiam outros setores importantes do meio social, como parte da imprensa e meios de comunicação e mídia 12 . Existem pastorais, institutos, entidades, núcleos públicos que se dedicam a focar sua vigilância sobre a prática de tortura em estabelecimentos penais e unidades policiais. As vítimas desses “injustiçados”, não possuem nenhum órgão protetor, nem assistência pública. As famílias de policiais que morrem em confronto não possuem um núcleo em gabinetes luxuosos para tratar do bárbaro crime que vitimou o agente público.
Partidos Políticos não levantam a bandeira pró familiares de vítimas. Mas ao contrário, pulsam projetos eivados de uma proteção exacerbada que fomenta o crime, a exemplo da comprovada estatística que mostra o aumento do número de mulheres, mães de família, dedicadas ao tráfico. Isso certamente porque gozam de benefício legal de prisão domiciliar caso tenham filhos. Prisão domiciliar que, quem atua na prática, sabe não ter eficácia ou efeito algum, sendo sequer cumprida ou fiscalizada.
Esses excessos traduzem o culto ao banditismo, a bandidolatria, onde importa o bem estar do autor do crime, o mal estar do policial que atua em defesa da sociedade e, quanto à vítima, esta perde no momento do fato e perde novamente no processo, como citariam Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza em “Bandidolatria e Democídio”.
Ainda no “campo legislativo‟ do CNJ, em meio à triste realidade da pandemia pelo Novo Coronavírus (COVID-19) vivenciada no ano de 2020, mais uma preconceituosa resolução com a mesma temática de presumir o agente policial como torturador ou agressor dos direitos da pessoa presa.
A Resolução n. 062/2020 pode receber alcunha de “libera geral‟, estabelecendo recomendações a juízes e tribunais a tornar o instituto da prisão ainda mais excepcional do que já previsto e a permitir a liberdade de tantos outros criminosos em decorrência da pandemia.
Além disso, na impossibilidade de realização das audiências de custódia, eis que somente os policiais podem ter contatos com supostos contaminados, ficando o restante em teletrabalho, recomendou-se que sejam realizados levantamentos fotográficos do conduzido no momento da prisão, de forma a verificar que não fora agredido.
Mais um ato de preconceito com toda atuação policial, pela forma genérica a que expõe os agentes e pela presunção abstrata. Contudo, tal norma logo é encampada por núcleos defensores dos Direitos Humanos dos Presos.
Tais medidas fomentam um incontável número de suspeitos caluniadores da atividade policial nos fóruns país afora, ressaltando ainda que travam pautas no sistema, não resolvem os problemas do sistema carcerário, propiciam maior impunidade e liberdade a autores de crimes diversos.
Além disso, não pensaram esses teóricos no constrangimento pela exposição a levantamentos fotográficos do corpo da pessoa presa. O constrangimento e afronta à intimidade é mais agressivo que o tratamento usual dado aos investigados e custodiados. Medida contraditória que mostra por fim nada mais que um preconceito e uma presunção de culpabilidade da atuação policial com o estigma de violenta.
Chega a ser ofensiva essa forma preconceituosa como se refere às atividades policiais alguns núcleos, entidades ligadas à defesa monocular de Direitos Humanos e até mesmo outros atores do Sistema de Justiça Criminal, dentre advogados, defensores públicos, juízes e promotores. Certo é que se tais ofensas seguissem a via inversa, certamente não teria tão pacífica aceitação.
Igual procedimento se adotou quando da edição da Súmula Vinculante número 11, sobre o não uso de algemas. Não levam em conta os procedimentos de segurança, conhecidos por policiais com expertise adquirida em treinamentos específicos.
O conhecimento da realidade prática é muitas vezes desprezado, prevalecendo a teoria fundada em ilusória sensação de normalidade de tudo e visão de que todos os suspeitos são dotados do sentimento de bondade e compaixão. Existe mais de um exemplo prático, na rotina judicial, de tentativa de custodiado se livrar do policial que realiza a escolta e até de agressões e riscos à vida de atores presentes em audiências.
Daí surge o questionamento de qual a dificuldade em se seguir procedimentos padrões de treinamento e análise de riscos reais, em detrimento dessa visão poética de que o custodiado naquele ambiente não esboçará nenhuma reação.
Subestimam-se reações, o que pode levar a resultados danosos à própria vida das pessoas ali envolvidas13. O agente público policial sabe disso, mas, em alguns casos, os demais atores atuam ingenuamente dentro da bolha garantista unidirecional distante dos fatos e tempos reais.
A cada dia existem mais pessoas, principalmente jovens, ligados a organizações criminosas em todo país. Não há Estado brasileiro hoje que não conte com a nefasta presença dos ditos faccionados. A experiência demonstra que em cidades de pequeno porte populacional, já existem membros de organizações criminosas comandando pontos de tráfico de drogas e ditando as regras de crimes que podem ou não ocorrer. Uma realidade que chegou aos mais inesperados locais e que políticas públicas já adotadas não conseguiram evitar, nesse caminho sem volta.
A visão é realista e muitas vezes choca os menos preparados para viver a realidade, talvez pelo comodismo de se debruçar sobre doutrinas e teorias sedutoras promissoras de um mundo perfeito. Entretanto, não se pode olvidar que a segurança pública assume hoje preocupante destaque na mudança de comportamento, invertendo a ordem natural para enclausurar o trabalhador e suas famílias, enquanto um criminoso, avesso que é a regramentos e normas, goza de liberdade e se alimenta impondo o temor que a existência do crime, por si só, já impõe.
Experimento prático fácil e esclarecedor, embora possa ser traumático, seria circular em uma grande Capital de Estado em locais ermos em plena madrugada, onde se poderia ter a maior sensação de liberdade e paz. Levando esse mesmo exemplo ao interior do país, seria o não murar sua residência, não instalar câmeras de segurança, cercas elétricas e outros ofendículos, cada vez mais comuns e presentes. Ainda, em outra esfera de criminalidade, permitir livremente, sem controle e vigilância, a uma criança ou adolescente acessar conteúdos em mídias digitais (internet) ou até não ter notícia alguma de que existem vendedores de drogas nos bairros mais variados, dos mais humildes aos de moradores com melhor condição econômica.
Então não se trata apenas de uma visão conservadora, repressiva e pessimista quanto ao controle da criminalidade nos moldes em que vem se desenvolvendo ao longo dos anos no Brasil. É, mais que isso, sair da bolha utópica que a crítica destrutiva e massificação midiática dos maus exemplos existentes em corporações policiais, possam voltar a própria população contra os responsáveis pela segurança pública e enaltecer a manipulação e domínio de lideranças criminosas sobre comunidades, até o ponto de se infiltrarem em outros setores sociais, como jurídico e até político.
- POLÍCIA JUDICIÁRIA CIVIL COMO FIEL DA BALANÇA, DE ÓRGÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA À FUNÇÃO ESSENCIAL À JUSTIÇA FREIOS E CONTRAPESOS DO SISTEMA
Assim, os direitos e garantias fundamentais devem ser analisados sob toda ótica de um sistema e voltado para sua aplicação prática e equilibrada, não apenas em campo utópico e algumas vezes até hipócrita, causando a falsa impressão de que tudo vai bem na aplicação da Justiça brasileira.
A Lei 12.830/2013 reafirmou na figura do Delegado de Polícia, carreira jurídica, poder decisório sobre prisão e liberdade diante do livre convencimento fundamentado. É o primeiro garantidor dos direitos e garantias fundamentais, ou o primeiro garantidor da legalidade e da justiça, estando à disposição da sociedade durante 24 horas14, inclusive nos tempos atuais de pandemia.
Entretanto, em que pese a existência de Propostas de Emenda à Constituição prevendo a migração da Polícia Judiciária do Título da “Segurança Pública” para o Título de “Função Essencial à Justiça”, a ser reconhecida legalmente tal natureza, na prática já se faz uma realidade de tempos, com inquéritos policiais e investigações cada vez mais eficientes e de qualidade, embasando a quase totalidade dos processos criminais em tramitação.
A Polícia Judiciária Civil, nos Estados, é o órgão responsável por essa função diante de tantos dilemas impostos na seara da segurança jurídica, restando apenas ser dotado de maior autonomia e independência funcional e especialmente financeira como outros órgãos essenciais à Justiça já o são. Assim estabelecido, certamente o equilíbrio proposto no garantismo integral estaria alcançado nas decisões da Autoridade Policial, oportunizando a todos os atores: investigação, acusação, defesa e órgão julgador, um comportamento imparcial como se espera. Estaria assim realizado o fiel equilíbrio da balança simbolizada pela Justiça.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A previsão das garantias e direitos fundamentais no texto constitucional e seu respeito pelos órgãos e instituições devem ser observados, proporcionando ao cidadão, especialmente na esfera penal e processual penal, a certeza de não ter agredidos alguns fundamentos inerentes à própria dignidade humana.
Entretanto, não pode servir de blindagem para a prática de ações favoráveis à criminalidade e à impunidade, sob risco de tornar totalmente sem efetividade as finalidades da aplicação da pena ao transgressor das normas penais. A utilização do instituto de forma genérica, para abranger e dar ilimitada proteção ao suspeito, indiciado ou processado, contrapondo direitos da coletividade e da paz social, passa a ser previsão superprotetora expondo a conflitos entre amplos direitos ao réu e restritivos direitos às vítimas e até mesmo aos responsáveis pelas duas fases da persecução penal.
Nesse cenário, o que se vê é uma inversão de valores, muitas vezes taxando agentes da segurança pública, especialmente policiais militares, civis e penais, de algozes dos criminosos, com presunção de atuação agressiva e violenta, enquanto se estende ampla liberdade de ação e credibilidade à versão do indiciado, suspeito ou réu.
O crime organizado se aproveita desta superproteção para estabelecer e ampliar domínios por todo território nacional, sabedores de que hoje existe uma grande possibilidade de se verem mais distantes do viés punitivo da lei que aqueles servidores públicos que atuam pela segurança pública, sob juramento de garantir a ordem pública e com vários dispositivos legais incriminando condutas que limitam e intimidam a atuação policial.
Assim, diante desse cenário jurídico e socialmente conflituoso, a melhor alternativa é o equilíbrio, fazendo sim valer os direitos e garantias fundamentais, com a ciência de que não são absolutos e sem limites e também estabelecer mais credibilidade à fé pública inerente à função do agente de segurança. O indiciado ou réu age, não raras vezes, denunciando caluniosamente este agente e os órgãos o sistema de justiça parecem querer acreditar.
A Polícia Judiciária, ainda merecendo muito ser fortalecida, é elo importante nesse equilíbrio, pois, ao mesmo tempo em que garante a apuração de crimes a partir do fato criminoso, imparcialmente buscando delimitar autoria e materialidade, zela também pelo adequado e devido processo legal nos moldes da Constituição Federal, sem ser parte processual ou órgão julgador, mas com atribuição e poder legal de decisão para estabelecer o respeito a tais funções.
Por fim, há de se reconhecer que já vem surgindo adeptos de uma moderníssima corrente doutrinária que começa a questionar justamente esse desequilíbrio advindo de uma cultura garantista extrema que foi construída unilateralmente, já que, sempre foi muito difícil apresentar um posicionamento contrário sem ser alvo de severos ataques por organismos, mídias e até acadêmicos e juristas apegados muito mais a utópicas teorias que a realidade prática vivenciada pela política criminal e de segurança pública mais adequada ao País. Sãos ventos de esperança da mudança em conceitos, eliminação de preconceitos e da inversão de valores que pautam as discussões sobre criminalidade e seus efeitos no direito brasileiro.
REFERÊNCIAS
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9 VILANOVA, Rafael Guimarães e Karine Alves Gonçalves Mota. Audiências de Custódia e seus Reflexos na População Carcerária do Estado do Tocantins. Disponível em: https:// ambitojuridico.com.br/ cadernos/ direito-processual-penal/ audiencias-de-custodia-um-estudo- sobre-seus-reflexos-na-populacao-carceraria-do -estado-do- tocantins/. Acessado em 14/09/2020.
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Sobre o Autor:
Delegado de Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso, atualmente lotado em Água Boa, Especialista em Direito Processual Penal e Civil, Especialista em Inteligência de Segurança Pública e Especialista em Segurança Pública com Ênfase na Atividade Policial