Por: Jozirlethe Magalhães Criveletto: Delegada de Polícia, mestranda em Psicologia Criminal, Especialista em Gestão de Segurança Pública, Direito Penal/Proc. Penal, Direito Civil/Proc. Civil e Direito do Trabalho/Proc. Trabalho e Líder do Comitê de Combate à Violência contra a Mulher do Grupo Mulheres do Brasil – Núcleo Cuiabá
Não somente no Brasil, mas no restante do mundo, é bastante comum a designação de datas ou períodos do ano utilizados como expressão de luta pela equidade entre homens e mulheres, e pelo fim de todas as formas de violência de gênero contra à mulher.
Desde de 2016, por meio da idealização da Subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres (SPPM), com o propósito de comemorar os 10 anos da Lei Maria da Penha, o Brasil tem aderido a Campanha “Agosto Lilás”, a qual envolve ações conjuntas entre os órgãos governamentais e não governamentais que trabalham no enfrentamento à violência contra à mulher, com o planejamento de ações voltadas às reflexões acerca da violência doméstica, a mobilização no intuito de prevenir os feminicídios como ápice do ciclo de violência reprimindo a prática dos crimes, os quais, até o advento da Lei 11340/06(Lei Maria da Penha) eram em sua maioria considerados de menor potencial ofensivo, com condenações amenas, que ao longo do tempo se mostraram inaptas a assegurar, a não reincidência.
Lilás é uma cor que na psicologia, significa respeito, dignidade; é a cor que eleva a espiritualidade e aumenta a autoestima, fatores que são essenciais na vida de todas as mulheres que desejam ser livres de um ciclo de violência e, nesse sentido, falar do tema no mês de aniversário da Lei Maria da Penha tem sido uma tarefa que cada vez mais tem envolvido a sociedade civil, empresas privadas, associações e outros organismos que desejam contribuir com a diminuição dos índices de violência doméstica, não somente no estado, mas em todo o país.
As entidades que já participam desse enfrentamento procuram desenvolver suas ações, em conjunto com outras ou não, no anseio de chamar a atenção da sociedade para o seguinte objetivo: o fim da violência contra à mulher. Sabemos que a temática nos conduz a algumas pontuações centrais, como a questão do aumento de registros após o surgimento da Lei ou ainda outra questão: Por que até o momento não existe uma central, um cadastro único de vítimas com medidas protetivas, ao menos em âmbito estadual? E, não menos importante: Quais as medidas necessárias para que obtenhamos o banco nacional de dados de agressores de Violência Doméstica?
São perguntas comuns para profissionais que já atuam na REDE de Atendimento, mas que ainda esbarra em algum momento, com a dificuldade no estabelecimento de fluxos, padronizações e até diretrizes para acolhimento e atendimento de mulheres que clamam por uma resposta mais rápida do Estado, seja no que concerne a demora no atendimento de um flagrante ou na demora de uma decisão ou sentença judicial.
A Pandemia do COVID chegou trazendo isolamento social a toda a sociedade permitindo que agressores tivessem ainda mais chance de estar junto à essas vítimas por mais tempo em isolamento social.
Bem sabemos que no ciclo de violência a primeira estratégia do autor é justamente promover o isolamento da vítima para que possa melhor manipulá-la e, notadamente, a Pandemia surgiu de repente mostrando que, verdadeiramente, as vítimas estariam ainda mais vulneráveis no ambiente doméstico.
Poucas mulheres buscaram as delegacias para o registro de uma ocorrência nesse período, e tal fenômeno não foi diferente no restante do país. Isso facilitou o aumento das mortes dentro dos lares e acabamos assistindo o aumento drástico do número de feminicídio em nosso estado de Mato Grosso chegando ao expressivo número de 62 mulheres assassinadas por companheiros ou ex-companheiros em 2020.
Diante desse panorama, as instituições ligadas nesse combate, tais como a Polícia, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública se empenharam em investir na tecnologia para melhor acesso das vítimas às políticas de atendimento.
Foram estabelecidos novos formatos e ferramentas a disposição de todas as mulheres para que justamente pudesse ser alcançado o maior número de pessoas, em menor tempo, e que a medida protetiva, a qual se constitui no principal recurso legal disponibilizado pela lei 11340, pudesse ser deferida imediatamente.
Aplicativos como o SOS Mulher com o ‘botão do pânico’ garantiram que a mulher saísse da própria unidade policial em posse desse ‘botão’ já em funcionamento no seu celular, trazendo às vítimas uma maior sensação de segurança, de auxílio do estado para o caso de uma futura abordagem do autor após a sua denúncia.
Além disso, buscou-se otimizar o próprio pedido de medida protetiva, colocando à disposição da população a possibilidade de se requerer medidas protetivas on-line, e por meio da Lei 14.550/23 essa medida ficou mais ao alcance da vítima de violência, uma vez que o dispositivo legal insere ao Art. 19 alguns parágrafos e, especialmente em seu parágrafo 5° prevê que “as medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência”.
Assim, observa-se que alguns passos foram dados na direção desse combate à violência contra à mulher, todavia, os desafios ainda nos espreitam.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que 258.941 mulheres foram agredidas no Brasil em 2023, significando uma alta de 9,8% em relação a 2022. Outro dado extremamente marcante compilado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública destaca que ao menos 10.655 mulheres foram vítimas de feminicídios de 2015 a 2023.
Em um país de múltiplas mulheres, com suas peculiaridades culturais, religiosas, ambientais, profissionais, há muito por fazer. Isso ocorre, por exemplo com mulheres indígenas ou mulheres quilombolas que não residem na capital ou outros polos de atendimento e, muitas vezes precisam se deslocar por quilômetros até encontrar uma unidade policial. Ou ainda, a exemplo das mulheres que vivem em zona de matas, florestas e não possuem internet que possa lhes favorecer no momento de uma agressão física, de uma ameaça ou violência maior. Essas são situações que cabem aos nossos gestores, aplicadores do direito, executores da lei, a reflexão sobre ações que efetivamente alcancem à todas.
Já avançamos? Sim. Mas avançamos pouco. Se em 2021, Mato Grosso assistiu a 43 mulheres tendo suas vidas ceifadas em razão de violência doméstica ou menosprezo, não mudou muito esse cenário em 2022, onde 47 mulheres sofreram feminicídios e em 2023, o qual terminou com 46 mulheres sendo mortas em razão de gênero, machismo, “simplesmente, por serem mulher” deixando 72 filhos órfãos de mãe. (Estatística divulgada pela Diretoria de Inteligência da PJC em 2023).
Nesse arcabouço de ações discutidas por parte das instituições do estado e outros organismos envolvidos, à despeito do enfrentamento à violência de gênero, estão os encaminhamentos necessários às vítimas de violência no resgate de sua autoestima e de sua independência emocional e financeira, os avanços nas análises das violências minimizando a impunidade dos agressores, às políticas de atendimento aos órfãos do feminicídio, bem como, a própria obrigação do autor à programas de recuperação e reeducação.
Tais avanços precisam acontecer de forma prática, e essas ações não serão possíveis sem que haja capacitação de todos os operadores dessa rede de atendimento, começando por quem irá promover a primeira escuta dessa vítima, até o juiz ou juíza que promoverá a sentença nesse processo.
De outro norte, nós brasileiros estamos acostumados a acreditar que o endurecimento das penas promove a diminuição do crime. A Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2025) estreou com esse condão, o de promover a diminuição nos índices de feminicídios em nosso país, e ao longo desses últimos anos, fomos assistindo nossas mulheres e meninas se tornando estatísticas. Esse fenômeno demonstra que, embora o endurecimento na punição do autor traga, à primeira vista, um efeito desestimulador na prática do crime, sem a existência de políticas públicas concretas, a longo prazo poderemos assistir ao descrédito na aplicação da Lei.
O “Agosto Lilás” traz a certeza de que a luta pelo fim da violência contra à mulher não pode ser de poucos, de apenas um setor da sociedade, de Ongs feministas, de Associações, Coletivos e Movimento de Mulheres ou da Polícia, do Judiciário. Não! A violência contra a mulher somente terá fim, quando toda a sociedade tiver a coragem de olhar em volta e perceber que todos nós somos afetados e que a responsabilidade é nossa na medida em que, se tivermos mecanismos legais deveremos colocá-los em prática, a começar pelo conhecimento da Lei. Como poderemos conscientizar uma mulher que está em situação de violência a denunciar se não tivermos conhecimento a respeito dos direitos, das medidas, dos recursos que a Lei lhe garante?
Por fim, se desejamos alcançar dias melhores precisamos entender que a promoção da igualdade de gênero cabe em todos os espaços, a começar no próprio seio familiar. A prevenção da violência e a disseminação de uma cultura de paz não é piegas, não é brega, não é “cringe”, é VIDA!
“Só se descontroem velhos preconceitos ensinando as pessoas a denunciar a agressão contra a mulher, a combater o machismo, a abominar o racismo ou qualquer outra forma de discriminação. Precisamos parar de oprimir o ser humano.” ( Maria da Penha)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 8 ago. 2006.
BRASIL. Lei n. 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 10 mar. 2015.
BRASIL. Lei n. 14.550, de 19 de Abril de 2023. Altera a Lei n. 11.340, de 7 de Agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para dispor sobre as medidas protetivas de urgência e estabelecer que a causa ou a motivação dos atos de violência e a condição do ofensor ou da ofendida não excluem a aplicação da Lei. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 20 Abr. 2023
Anuário da mulher de Mato – Grosso: dados de violência contra a mulher registrados no Estado de Mato Grosso – Ano 2023 / Secretaria de Estado de Segurança Pública. – Cuiabá: SESP – MT, 2024. Disponível em https://www.sesp.mt.gov.br/anu%C3%A1ri. Acesso em: 25 ago 2024
BUENO, Samira; et al. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. 4. ed. São Paulo: DataFolha/Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023
FBSP, Fórum Brasileiro De Segurança Pública. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública: 2023. FBSP, 2023. Disponível em: https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/721e3396-1a66-4ff6-8cebea319684a57a. Acesso em: 25 ago 2024 BUENO, Samira; et al. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. 4. ed. São Paulo: DataFolha/Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023
